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A economia e o comércio em Campo Maior: o papel do caixeiro viajante

A vila de Campo Maior era ponto certo para os caixeiros que atravessavam os estados do Maranhão e do Ceará

 Imagem ilustrativa

Assim como hoje, o modos operandi da economia do século XIX era muito dinâmico. Mercadorias iam e vinham à Campo Maior, oriundas das mais variadas regiões do Brasil e até de outros continentes. Mesmo antes do século XIX esse fenômeno econômico internacional podia ser observado. As famílias mais opulentas ostentavam seu poder financeiro adquirindo produtos importados. Registra-se, por exemplo, no testamento de Marcelino da Cunha Castelo Branco, na relação dos seus bens, um relógio inglês de valor considerável. Outros testamentos da época e até de data mais remota, registram peças de porcelana oriundas da China. Por outro lado, Campo Maior exportava sua carne bovina para muitos estados brasileiros e também para o exterior. A carne do gado campo-maiorense cruzava o atlântico em direção à Europa, chegando, finalmente, à mesa da família portuguesa. Mais tarde, já no século XX, foi a vez de Campo Maior importar a cera extraída da carnaúba, que também viajava para o outro lado do atlântico. Dessa forma, o ritmo do comércio era constante, e Campo Maior sempre esteve presente no eixo econômico.


Havia também o negócio mais barato, cujos produtos circulavam de forma menos burocrática. Esse tipo de negócio também aquecia a economia e fortalecia o comércio local. As pequenas transações econômicas realizadas entre os vizinhos fazendeiros, no período colonial, não representavam grandes movimentações, visto que as mercadorias que possuíam para negócio eram praticamente as mesmas. Apenas os ricos fazendeiros tinham acesso a produtos advindos de outras praças. A realidade comercial começou a ganhar um novo status no século XIX, especialmente na segunda metade desse século. Nesse período, com as vilas já muito bem estabilizadas, com negócios acontecendo nas feiras locais, a população, a grosso modo, começou a se envolver mais na vida comercial. As “trocas” eram realizadas com mais frequência e já começava a surgir diversos produtos de outras praças comerciais. 


A figura do caixeiro viajante foi de grande importância nesse momento. O termo representa a figura do homem que viajava carregando consigo seus produtos, a maioria deles consistia de bugigangas de pouca importância e baixo valor comercial, mas que encantavam seus clientes. Eles percorriam cidades e povoamentos fazendo os mais variados negócios, desde a troca de produtos à venda de artefatos mais caros, como imagens de santos, tecidos mais exuberantes, livros e até cabeças de gado. Os itens mais baratos era a rapadura, couraças, cachaça, chapéu, etc. Também vendiam remédios e perfumarias, bem como espelhos e roupas.

 

 

É importante não confundir a figura do caixeiro viajante com a do colportor. Esse último trabalhava com a distribuição de literatura, especialmente a literatura religiosa. Bíblias foram sua principal mercadoria distribuídas nas vilas brasileiras. Embora a profissão do colportor tenha evoluído motivada por impulsos econômicos, em termos gerais o colportor só trabalhava com a venda de livros e outras literaturas. O caixeiro vendia de tudo, inclusive livros, mas esses eram mercadorias especiais e poucos trabalhavam com isso, tendo em vistas o grande analfabetismo que caracterizou aquele período. Um caixeiro poderia ser um colportor, mas o colportor não. Seu comercio era restrito aos livros. Colportores que vendia outros itens, na realidade, estavam migrando para a profissão do caixeiro viajante. 


O caixeiro viajante se apresentava de várias formas. Havia aquele que dispunham de um menor volume de mercadorias. Geralmente viajavam entre as vilas mais próximas e traziam seu mercado no lombo de uma mula. Porém, alguns dessa categoria eram diferenciados por que traziam produtos especiais, como cremes e comidas exóticas, raras vezes animais de outras regiões, roupas e joias, e os mais “revolucionários” produtos. Outros possuíam verdadeiras empresas. Percorriam grandes rotas, conduziam mercadorias em carroças, tocavam boiadas, rebanhos variados, cargas de rapadura, cereais e víveres diversos, na verdade, produtos de toda natureza. Ele não apenas vendia mercadorias, também comprava o que lhe interessava, especialmente coisas que algum cliente, em algum lugar, tinha encomendado. Comprava coisas quebradas, peças de uso na cozinha ou ferramentas de trabalho diário. Os caixeiros tinham vida mais ou menos nômade, pois acampavam em descampados à beira de estradas, descansavam o gado, as vezes retendo um dia inteiro para a recuperação dos animais. Nas vilas, o gado geralmente pastava em alguma fazenda, cujo caixeiro pagava a estada dos animais naquele dia. Geralmente a moeda era algum produto que era negociado com o dono da terra.


Outra característica do caixeiro viajante era sua elegância. Era praticamente uma regra o traje pontual do vendedor. Sempre bem apresentado, quase sempre de terno ou blusas bem alinhadas, calças e sapatos combinando tons, aparência bem trabalhada, com barba aparada ou barba feita, ele estava sempre diante de seus clientes de forma impecável. Mesmo atravessando o calor extenuante, o cacheiro não deixava sua aparência cair. Ao chegar nas vilas, geralmente, antes de realizar qualquer transação comercial, banhava e se alinhava para as visitas ou para ir aos mercados. 


A chegada do caixeiro viajante era um acontecimento que mobilizava muitas pessoas (clientes). Alguns moradores aguardavam ansiosamente a chegada do vendedor, que muitas vezes vinha de outro estado. Traziam produtos encomendados e também anunciavam que trariam novos produtos na próxima viagem, a qual eles marcavam a data aproximada da próxima passagem, que poderia variar de três a cinco meses. Em Campo Maior, por exemplo, temos a certeza da passagem de vendedores que vinham do Maranhão e do Ceará. Geralmente o caixeiro viajante demorava alguns dias na vila, visitando clientes antigos e fazendo novos fregueses. Se o negócio se aquecia, os dias se tornavam semanas. Faziam muitas visitas domesticas, mas vendiam muito nas feiras locais. Caso a visita na vila se prolongasse, o vendedor se hospedava no povoamento. Alguns caixeiros viajantes, os que trabalhavam com mais produtos e que percorreriam distancias maiores, vinham em comitivas que eram formadas por membros da família, na maioria dos casos os filhos ou agregados que viviam sob a sua dependência. Os caixeiros viajantes não podem ser considerados ciganos, pois tinham residência fixa, apesar de passar meses fora de casa, e não andavam em conglomerados de famílias. 


A vila de Campo Maior era ponto certo para os caixeiros que atravessavam os estados do Maranhão e do Ceará. Pela sua localização, sua antiguidade, mas sobretudo pela sua organização, economia e beleza urbana, que na época consistia nos quadrantes da igreja de Santo Antônio, suas praças mais próximas, e algumas quadras no fundo da igreja, onde já residiam muitas famílias, Campo Maior era certamente uma praça bastante lucrativa. Campo Maior era uma vila diferenciada, cujo comércio prosperava continuamente. Parte da geografia urbana da antiga vila em fins do século XIX ainda pode ser vista nas vielas que ainda resistem ao processo de modernização urbana. Uma dessas antigas vielas, um beco com pouco mais de 25 metros, talvez uns 30 metros, ainda pode ser observado. No mesmo setor, que está situado defronte da antiga residência do Cel. Chico Alves, contam-se três vielas, duas dão acesso direto a área de carnaubais, que geralmente fica alagadiça no inverno. A terceira segue na mesma direção, mas se liga a uma rua da cidade. São áreas pouco valorizadas atualmente, mas naquele momento histórico, aquele setor era área nobre, central e ponto de referência para muita gente. 


Nesse terceiro beco se hospedou um caixeiro viajante cearense, vindo de Itapagé, no Ceará, que percorria sua rota comercial pelo menos três vezes ao ano.  Essa é uma história especialmente importante para mim, pois registra a chegada da família Paixão em Campo Maior, que hoje está na sexta geração. Esse meu antepassado, penta avô dos meus filhos, já fazia comércio na terra dos carnaubais na última parte do século XIX. Em Campo Maior, muito provavelmente já elevada à categoria de cidade, o que representa algum momento logo após o ano de 1889, ele ficava hospedado numa minúscula casa situada num desses becos, que até hoje é conhecido pelos mais velhos como o “beco do Paixão”. Além do sobrenome Paixão, nome atípico atualmente, não há mais referências à sua identidade. Sobre ele, sabemos que era caixeiro viajante e que descia de Itapagé rumo ao Maranhão. Seu principal comércio girava em torno da venda de gado. Descia com gado e trazia cargas de rapadura. Sempre pousava em Campo Maior e, em algumas viagens, trazia em sua companhia o filho, que ainda era muito jovem, nascido no despontar da última década do oitocentos. A história da minha família, ou da minha “casa”, começou com esse velho caixeiro viajante cearense e com seu filho, Laurindo Paixão, avô do meu pai, que herdou dele o nome. Eu falarei mais dessa história no meu próximo post.