NOTURNO DE OEIRAS
O poema escolhido dessa semana é de uma beleza ímpar. O autor é alguém que me é bastante caro, não só por nossos laços de amizade, mas por ser seu fã incondicional e ter “devorado” praticamente todas as suas criações literárias.
Conservo o hábito de arquivar peças e comentários a respeito do nosso maior poeta vivo piauiense, Elmar Carvalho.
De fato, o insigne poeta Elmar, hoje transpôs a fronteira estadual e figura de maneira cintilante entre os grandes nomes da fina flor literária nacional, possuindo também uma acentuada e magna riqueza crítica.
Resolvi publicar o poema Noturno de Oeiras, porque particularmente entendo que nesse poema o poeta atingiu toda a sua maturidade poética e usou de sua mente extremamente criativa e prodigiosa, mais uma maneira de nos transplantar para uma dimensão (permitam-me buscar como atalho Camões), nunca dantes penetrada.
Apreciem comigo:
NOTURNO DE OEIRAS Meia-noite. Metade silêncio, metade solidão.
Atravesso a praça das Vitórias na hora dolorosa das doze badaladas punhaladas que também me atravessam.
Da casa de doze janelas doze donzelas me espiam com olhares que são setas de medo que assustam e extasiam.
Passadas pesadas nos assoalhos de tábuas dos rugosos sobrados se confundem com o batuque tuc-tuc e com o atabaque tac-tac de meu desengrenado coração.
A lua se esgueira e espreita das frestas das nuvens.
Os fantasmas caminham solenes, devagar, visíveis e invisíveis, seres quesão e não são.
No horto do Pé de Deus visagens rezam contritas. No horta do Pé do Diabo assombrações assombram bichos e visitas.
À distância a casa da pólvora vigia em sua solidez de pedra bruta.
Nos campanários de antigas igrejas algum falecido sineiro repica os sinos para si mesmo.
Uma sonata se evola de piano que já não existe. E persiste por pura teimosia.
O suicida se insinua no vão da escada de vetusto sobrado. Uma taça de prata tilinta e se despedaça ...
o relógio da catedral parou no tempo que continua: a pátina rói as bordas da ferida do mostrador e mostra a dor das doze badaladas.
Negros ainda esperam abolição absolvição nas cercanias do Rosário pelos pecados que não pecaram
As pedras antigas do calçamento são percorridas por sombras feitas somente de alumbramento.
O vento que passa não é vento: é fru-fru de saia de pessoa morta ou hálito de porta de casa já demolida.
Da Madona !ágrimas escorrem e chovem sobre os telhados ...
Oeiras navega na noite de um tempo que não termina. De um tempo sem medida, fugitivo de ampulhetas e relógios.
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