Relatos de dores persistentes nas articulações e nos músculos, comuns em pacientes com a chamada Covid-19 longa, que os afeta por semanas ou até meses, despertaram a atenção de pesquisadores de vários países. Estudos buscam desvendar os motivos que levam a essa condição, revelou a BBC.
Levantamento de pesquisadores de universidades dos Estados Unidos, do México e da Suécia, com base em estudos com 48 mil pacientes, apontam que um em cada cinco pacientes com Covid longa sofre com dores nas articulações, e um em cada dez, com dores musculares.
Outro estudo, feito por pesquisadores de Cingapura com 294 pacientes internados com Covid-19, aponta que manifestações musculoesqueléticas generalizadas acometem 50% dos hospitalizados, como mialgia (37,5%), artralgia (5,7%) e dor nas costas (6,8%).
“As pessoas relatam que os problemas mais comuns após terem Covid estão nos ombros e nas costas, mas problemas nas articulações e nos músculos podem ocorrer em qualquer parte do corpo”, destaca um guia desenvolvido pelo sistema de saúde pública do Reino Unido.
“Algumas pessoas têm dores generalizadas que podem ir e vir durante algum tempo, à medida que se recuperam. Algumas também têm sensações estranhas ou diferentes, como dormência, pontadas ou fraqueza nos braços ou pernas”, completa o documento.
Segundo os especialistas, não há uma causa única para todas essas condições. Em geral, doenças infecciosas, sobretudo virais como a Chikungunya e a Covid-19, podem causar dores durante os processos inflamatórios, mas há outros fatores associados ao novo coronavírus.
O médico intervencionista da dor no hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, André Mansano, cita quatro deles: o distanciamento social, que aumentou a incidência de dor crônica não só pelo aumento do estresse, mas também por elementos como sobrecarga no ambiente doméstico, sedentarismo e diminuição do acesso à saúde; os efeitos diretos da Covid-19 em si, causando neuropatias e mialgias; os efeitos secundários do tratamento da doença, como, por exemplo, um relaxante muscular administrado na UTI que pode paralisar a musculatura por semanas e levar a uma atrofia muscular; e a resposta do sistema imunológico à doença, que pode afetar o próprio corpo e às vezes ser mais danosa que o vírus.
Essas dores podem ocorrer em fases diferentes da doença e por diversos motivos. “Por isso, é tão necessário compreender o contexto individual de cada paciente para entender a causa daquela dor”, explicou à BBC o médico reumatologista e professor da Universidade do Estado do Pará (Uepa), João Alho.
“Quem sobreviveu a casos mais graves, inclusive com necessidade de ir para a UTI, com certeza perdeu muito peso, sobretudo massa muscular. Essa é uma situação de sarcopenia pós-UTI, que causa dores até haver a completa reabilitação, que pode durar meses. Mas pacientes com doenças leves também podem perder massa muscular e causar mialgia ou dores articulares”, completou Alho.
Como se processa essa dor?
Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor, sentir dor é “uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada, ou semelhante àquela associada, a uma lesão tecidual real ou potencial”. Experiência pessoal definida pelo próprio paciente, ela prejudica o dia a dia das pessoas e pode afetar a vida social, causar ansiedade e diminuir a autoestima e a confiança.
O aparecimento de sintomas persistentes, entre eles dores musculares, não é novo em epidemias de doenças respiratórias. Isso ocorreu, por exemplo, na gripe russa no fim do século 19, na gripe espanhola no início do século 20 e na Sars no início dos anos 2000.
“Qualquer doença infecciosa, sobretudo viral, pode ter mialgia por inflamação de vários tecidos, que inclui o músculo e a sinóvia (uma espécie de membrana das articulações), em sua fase mais ativa”, esclareceu João Alho, que também cita os casos de dores ligadas à resposta do sistema de defesa do corpo contra invasores, como um vírus. “Ela pode ser tão exacerbada que o próprio sistema imunológico machuca também nossos tecidos”.
Uma das hipóteses está ligada à chamada tempestade de citocinas, que em geral é uma reação desmedida do sistema de defesa do corpo que acaba sendo mais danoso que o próprio invasor. Segundo o reumatologista da Uepa, essa condição de saúde, que chega a ser fatal em alguns casos, pode induzir danos nas articulações e músculos, “desencadeando sintomas relacionados à dor”.
Um exemplo dessa reação do corpo contra ele mesmo surgiu em um recente estudo feito por pesquisadores da Northwestern University, nos Estados Unidos, a partir de exames de imagem de pacientes, nos quais identificaram diversos fatores associados à dor, como a formação de edemas e mudanças inflamatórias nos tecidos, como fluídos e inchaços, hematomas, gangrenas, lesões em nervos e coágulos.
Em um dos casos analisados, o vírus desencadeou em uma mulher de 72 anos um quadro confirmado de artrite reumatoide autoimune, uma doença inflamatória crônica, na qual o corpo começa a produzir anticorpos principalmente contra os próprios tecidos. Ela acomete duas vezes mais mulheres que homens e sua incidência aumenta com a idade, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia.
No caso da Covid-19, pesquisadores estudam como o vírus poderia causar diretamente essas dores, e uma possibilidade passa pela proteína ACE2 (ou ECA2, em português), que funciona como uma espécie de ‘fechadura’ de células humanas abertas pela ‘chave’ do coronavírus durante a invasão.
Um grupo de pesquisadores chineses analisou a presença do vírus na medula espinhal, estrutura de tecidos nervosos dentro da coluna vertebral que tem a função de transmitir impulsos nervosos do cérebro para todo o corpo, como um elemento importante de indução da sensação de dor dos pacientes.
Segundo eles, isso ocorreria por meio do ataque às células nervosas com ACE2, que levaria, por consequência, a uma queda no nível de hormônios ligados à pressão sanguínea (angiotensinas) e, assim, à dor. Mas essa é só uma entre diversas hipóteses em estudo por especialistas desde o início da pandemia do novo coronavírus.
Outra questão que intriga os cientistas é por que pacientes do sexo feminino sofrem com mais sintomas da Covid longa, entre eles as dores musculares e nas articulações. Há diversas hipóteses para tentar explicar isso, mas nenhuma delas ainda foi confirmada. Para pesquisadores do Reino Unido, essa maior prevalência pode estar ligada ao fato de os quadros de autoimunidade serem mais comuns entre mulheres com mais de 40 anos.
Cientistas também sugerem a possibilidade de essa condição estar ligada ao contato inicial com o vírus, porque há mais mulheres trabalhando em funções com maior exposição à doença. Outra hipótese aponta que as mulheres tendem a sobreviver mais à doença aguda do que os homens, e por isso elas estariam em maior número entre os pacientes com sintomas de longa duração. Há ainda outra possível explicação: homens tendem a revelar ou buscar menos tratamento para seus sintomas. Mas ainda são necessários outros estudos mais aprofundados para confirmar ou refutar essas possibilidades.
Por que surgem tantas sequelas?
De acordo com as pesquisas, entre os dez efeitos mais comuns dos pacientes que não se recuperaram totalmente da Covid-19 dois deles estão relacionado à dor: dor nas articulações e dor de cabeça. Depois vem fadiga, desatenção, perda de cabelo, falta de ar, perda de paladar, perda de olfato, dificuldade de respirar depois de exercício físico e tosse.
Segundo o farmacêutico e professor da pós-graduação em Farmácia Clínica e Prescrição Farmacêutica no ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, Rafael Poloni, o surgimento constante de estudos que indicam novos danos relacionados à Covid-19 se devem ao fato de que o novo coronavírus é ainda um mistério em todos os aspectos, inclusive em relação às sequelas.
“[As sequelas] estão sendo descobertas aos poucos, haja vista que é uma infecção nova, com comorbidades associadas na maioria das vezes. Ao farmacêutico cabe informar às autoridades competentes essas possíveis sequelas da infecção da Covid-19, identificadas em seus pacientes, bem como estar sempre atento às bases de divulgação de estudos científicos, para que as informações possam ser passadas, aos pacientes e à população em geral, de modo fidedigno”, destacou ele, em entrevista à equipe de jornalismo do Portal do ICTQ.
As dores podem aparecer em diversas fases da Covid-19 e com durações distintas. De acordo com André Mansano, do Einstein, elas podem ocorrer durante a infecção, persistirem ou mesmo surgirem meses depois. “Há pacientes que têm a resolução do quadro e depois de um tempo passam a ter artralgia (dor na articulação), sendo que o que causou foi essa resposta inflamatória anterior lá atrás”.
Estudo liderado pela Universidade de Leicester com 1.077 pacientes que receberam alta hospitalar entre março e novembro de 2020 no Reino Unido mostrou que apenas 29% se sentiram totalmente recuperados após cinco meses de alta, e que o restante ainda apresentava diversos sintomas, como fadiga, falta de ar, dores nas articulações e perda de memória.
Mas esse quadro nem sempre está ligado a pessoas com Covid grave. É o caso do professor universitário Francisco Fambrini, 51, que já esteve em consulta com sete médicos e foi diagnosticado com Covid leve, sem necessidade de internação – mas ele disse à BBC, no entanto, que seu quadro tem gravidade, diante dos efeitos da Covid longa.
“O problema é que a doença pode deixar sequelas terríveis que demoram muito tempo para sarar”, afirmou Fambrini, que desde janeiro, teve que lidar com dores, algumas que persistem até hoje, em diversas partes do corpo, como as panturrilhas, os joelhos, as costas, as juntas dos dedos, o abdômen, os olhos e a cabeça.
Quais são os tratamentos indicados
Especialistas entrevistados pela BBC afirmaram que o tratamento para essas dores é baseado em atividade física e fisioterapia, quando possível, além de medicação a depender da intensidade do quadro de saúde. Mas a primeira orientação é sempre procurar um médico, pois somente ele poderá investigar as causas e o histórico clínico e a partir daí oferecer um tratamento adequado ao paciente.
Todos os médicos alertam para os riscos de automedicação, que podem causar, por exemplo, problemas gastrointestinais e sobrecarga dos rins em idosos. André Mansano frisou que “o tratamento da dor é feito de forma escalonada”, sempre começando por medidas menos invasivas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) criou um padrão de tratamento analgésico representado por uma escada de três degraus, onde quanto mais intensa é a dor do paciente, mais fortes serão os analgésicos.
Já o sistema de saúde pública do Reino Unido recomenda que os pacientes devem ter por objetivo retomar às atividades que desempenhavam normalmente antes de adoecerem. E para isso, podem ir aumentando gradualmente a quantidade de movimentos e atividades que exercem, e só não devem praticar exercício físico se for uma orientação médica.
“Se o paciente tem Covid, ele precisa, mesmo que isso demande muito esforço, fazer algum grau de atividade física”, salientou Mansano. Ele sugeriu alternativas cotidianas, como trocar o elevador pelas escadas do prédio, dispensar o uso do controle remoto, levantar para buscar copos de água em vez de usar garrafas maiores, além de praticar exercícios físicos seguindo instrutores com canais na internet.
Em casos mais avançados da dor, existe a possibilidade de os médicos prescreverem anti-inflamatórios mais potentes, da classe dos corticoides ou, em um degrau acima, os opioides, que, contudo, possuem ainda mais efeitos colaterais.
Bianca Viana
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